Categoria: Palavra do Arcebispo

08 Dez 2023

8 de dezembro, em Vila Viçosa: Homilia do Arcebispo de Évora na Solenidade da Imaculada Conceição

ARCEBISPO DE ÉVORA

HOMILIA SOLENIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO

VILA VIÇOSA 08/XII/2023

 

Em pleno tempo de Advento, celebramos a Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria. Advento é convite incessante para a preparação para o encontro com o Senhor, fazendo de cada celebração litúrgica um encontro com o Senhor; de cada encontro humano, uma oportunidade de crescimento e amadurecimento na humanização; de cada cruz da vida, uma esperança pascal, até que o Senhor venha definitivamente às nossas vidas e, finalmente, ao encontro de toda a Humanidade.

O Advento centra-nos na Esperança e na Vigilância, convidando-nos a caminhar até Cristo. Este caminho faz-se pelo progresso da vida espiritual, numa crescente identificação com o Reino de Deus, proclamado por Cristo. Este caminho exige-nos conversão, para que seja possível a nossa identificação com os valores e critérios do Reino de Deus, proclamado pelo Senhor Jesus. Vigiar sempre, sem nunca deixar de esperar, é a concretização deste espírito de conversão, de metanoia própria da nossa cristificação.

As leituras bíblicas que acabámos de acolher em nossas vidas, convidam-nos a contemplarmos Maria, a Mãe de Jesus, a sua primeira e mais excelsa discípula.

Na primeira leitura, retirada do Livro do Génesis, o autor Sagrado explica, mediante uma narrativa alegórica, repleta de metáforas, e etiológica, a transgressão original, da qual sobressai a repetida tentação da Humanidade prescindir de Deus e de querer ser como Deus. O Evangelho apresenta a Virgem Maria como resposta a esta desordem original e originante. À criação de Eva, por parte de Deus, responde o mesmo Senhor com a nova criação que, em Maria, começa, com a Sua entrega incondicional à vontade de Deus: «Faça-se em mim, segundo a Vossa Palavra». É que Maria sabe que Deus é o Senhor da História e, por isso, é o Senhor da Sua vida.

Um comentador bíblico contemporâneo afirma que, «em Maria, Deus contempla aquilo que gostaria de ver em cada um de nós»; é neste contexto que o Apóstolo Paulo, no passado Domingo, dizia aos Filipenses: «Tenho plena confiança de que Aquele que começou em vós tão boa obra, há-de levá-la a bom termo, até ao dia de Cristo Jesus».

Deus não impõe, mas propõe, como fez com a Virgem de Nazaré. Se n’Ela, Deus quis precisar do seu SIM para que o Verbo de Deus, Jesus Cristo, se formasse e se fizesse homem, nascendo como Redentor de todo o Homem e do Homem todo, hoje, a caminho do Natal, a Palavra do Senhor convida-nos a deixarmos que essa mesma Palavra gere Jesus nos nossos corações e nas nossas vidas para que, como discípulos missionários, O possamos anunciar, testemunhar e transmitir, para salvação de muitos e de muitas. Eis o apelo desta Solenidade, em tempo de Advento: deixar que Cristo se forme em nós para que sejamos discípulos missionários, com testemunhos de vida contagiantes, sempre na Alegria do Evangelho. «Grandes maravilhas fez por nós o Senhor, por isso, exultamos de alegria!».

Na segunda leitura, ouvimos o Apóstolo Paulo proclamar aos Efésios a sua vocação à Santidade, enquanto Filhos de Deus, herdeiros da Eternidade e Pedras Vivas da Igreja de Cristo. A nossa vocação batismal insere-nos na Igreja e faz de cada um de nós membros vivos do Povo de Deus. A eclesialidade é uma referência incontornável para os discípulos missionários: «Que ninguém chame Pai a Deus, se não chamar Mãe à Igreja!»

Na Virgem Maria,  encontramos um modelo para a sua vivência eclesial tem em Maria a referência maior e o auxílio supremo. É que Maria pertence à Igreja, verdade que nem sempre parece ser valorizada. Ela faz parte do mesmo povo que nós. É o membro mais eminente da Igreja, mas não está fora dela. Santo Agostinho, que a proclama «santa e bem-aventurada», não hesita em sustentar que «é mais importante a Igreja do que a Virgem Maria». Precisamente «porque Maria é uma parte da Igreja, membro santo, membro excelente, membro supereminente, mas, apesar disso, membro do corpo total».

O que é singular em Maria tem validade e, sobretudo, luminosidade para a globalidade da Igreja, O que Maria foi é o que a Igreja é convidada a ser continuamente. Para Cristo, Maria é a segunda Eva, aquela que restaura, pela sua obediência, o que a primeira havia corrompido pela sua desobediência; assim, ela é a verdadeira auxiliar da obra salvífica de Cristo e o “recetáculo” da Igreja, como lembra Santo Ambrósio.

Os Padres da Igreja gostam de sublinhar que Maria é, ao mesmo tempo, Virgem e Mãe: virgem, pois preserva o seu corpo para a encarnação da Palavra divina, no seio da fé – tornando-se, assim, mãe de uma forma inimitável. Maria é a figura-tipo da Igreja, não como mera “prefiguração”, mas, sim, enquanto arquétipo, isto é, enquanto “ideia” realizada de forma perfeita e inigualável e é, por isso mesmo, na sua ação pessoal, no seio da comunhão dos santos, a única que é perfeitamente adequada e coextensiva à eficácia da Igreja como “auxiliar” de Cristo. A missão de Maria reside na sua maternidade. Ela é a mãe dos membros de Cristo porque, pelo seu dom de amor «contribuiu para que nasçam na Igreja os crentes». Os Padres conciliares quiseram retomar esta ideia ao afirmarem, na Constituição Dogmática Lumen Gentium: «No mistério da Igreja, a qual é também com razão chamada mãe e virgem, a bem-aventurada Virgem Maria foi adiante, como modelo eminente e único de virgem e de mãe», com Aquela que foi sempre de Deus, desde o seu primeiro instante, pela Sua Imaculada Conceição.

A nossa Arquidiocese no seu Plano Pastoral para este ano, tão valorizado pelo 53º Congresso Eucarístico Internacional de Quito, no Equador, a decorrer de 8 a 15 de Setembro de 2024, e o Congresso Eucarístico Nacional previsto para Braga também no próximo ano entre os dias 31 de Maio, 1 e 2 de Junho, leva-nos a centrar a nossa atenção na Eucaristia.

De facto, a celebração da Eucaristia, sobretudo ao domingo, é a forma primeira e fundamental com a qual o Santo Povo de Deus se reúne e se encontra. Onde não for possível celebrá-la, a comunidade, mesmo desejando-a, recolhe-se à volta da celebração da Palavra. Na Eucaristia celebramos um mistério de graça do qual não somos nós mesmos os artífices. Chamando-nos a participar do seu Corpo e do seu Sangue, o Senhor torna-nos um só corpo entre e nós e com Ele.

Minhas Irmãs e meus Irmãos, a Eucaristia é o centro da vida cristã para onde tudo converge e donde tudo dimana. Pela celebração eucarística o Senhor Jesus renova a sua presença entre nós “até ao fim dos tempos”. Nela se torna presente Cristo Salvador, se torna manifesto o ministério sacerdotal e se exprimem os serviços e ministérios laicais. Na Eucaristia, a comunidade louva o Senhor, reza e implora as graças e bênçãos para a sua vida. Sem a vida nova que brota da Eucaristia, a comunidade perde vigor e o entusiasmo da fé vai-se desvanecendo irremediavelmente.

A Virgem Maria, Senhora do Pentecostes e Mãe educadora da nossa Fé, convida-nos a renovarmos as nossa vidas Cristificando-as a partir do dom da Eucaristia. Eis o seu convite: “Fazei tudo o que Ele vos disser”.

É sempre tempo favorável, Kairós, para nos abrirmos ao chamamento do Senhor, ou para renovarmos a alegria do SIM que um dia demos. Com Maria, Mãe intercessora, façamos a entrega de nossas vidas a Cristo, a fim de por Ele darmos um SIM radical expressa vontade do Pai”. Eis-nos perante o desafio de nos renovarmos na Alegria do Evangelho, pelo SIM continuamente dado às exigências de uma Igreja em saída. Nós somos hoje  resposta comprometida ao convite de Cristo: “Vem e segue-me”! Da Eucaristia partimos e à Eucaristia voltamos!

Que a Imaculada Virgem Maria, esteja sempre presente, como incentivo e educadora na edificação da Comunidades Sinodais pelas quais se mostre o verdadeiro rosto do Pai revelado por Jesus Cristo.

 

+ Francisco José Senra Coelho

Arcebispo de Évora

18 Mai 2023

A Palavra do nosso Arcebispo: EUTANÁSIA? Não à “negociabilidade da vida”

Ao falar de Eutanásia, estamos a tocar no sentido do dom maior que, para nós crentes, Deus confiou ao Ser Humano: a vida. Sendo dom, ela é também tarefa, pois devemos preservá-la, respeitando a sua sacralidade e não a dispondo de modo arbitrário.

O Criador respeita a vida do Ser Humano. A Bíblia é – de longe- o livro que mais respeita o Ser Humano. Se a “espremermos”, o que sai? Sangue! Porque o que ela contém é VIDA!

A vida humana não pode ser encarada de modo subjetivo em que cada qual a usa e dispõe do modo que quer. O Ser Humano não vive isolado, mas em relação, não vive para si mesmo, mas a sua vida tem uma referência transpessoal e de responsabilidade na sociedade e para o bem comum. Embora inseridos num mundo tão heterogéneo, a vida de cada um de nós é única é irrepetível.

Desde a sua conceção até à morte natural, a pessoa humana tem missão a cumprir, tem “utilidade”. Mesmo na debilidade e no sofrimento, não é “peso”, mas dom e sabedoria para os outros, pois a sua dignidade não é diminuída nem nunca se perde.

Perante este valor intrínseco e “inviolável” da vida humana – que a Constituição Portuguesa reconhece no artigo 24º, nº. 1-, como querer colocá-la de um modo tão superficial num “jogo” de vontade da Pessoa perante a dor e o sofrimento? Por que motivo a sociedade, reclamadora de tantos direitos e garantias, está a tratar de modo tão leviano o pressuposto de todos os direitos e bens terrenos? Queremos que o Estado de direito tenha um bom e eficaz sistema de saúde que garanta o diagnóstico e tratamento dos doentes sempre com a finalidade de defesa da vida humana. Não será a eutanásia uma oposição e até mesmo negação da medicina?

Na etimologia grega, Eutanásia significa “boa morte”. Hoje tem-se definido a eutanásia como «uma intervenção para terminar a vida de alguém, a seu pedido (informado, consciente e reiterado), quando este apresente sofrimento intolerável, estando em fim de vida».

 

Eliminar a dor, ou aniquilar a vida?

Assim, a eutanásia não é a eliminação da dor, mas a aniquilação da vida. A eutanásia não é a humanização do sofrimento e do fim da vida, mas a legalização da morte programada. A eutanásia é um modo fácil e ilusório de encarar o sofrimento, pois não reclama nem exige da sociedade a compaixão, o amor e a solidariedade para com os doentes. Neste contexto cultural, voltado para o “eu”, é difícil o Ser Humano sair de si mesmo e viver a compaixão, isto é, inclinar-se perante o sofrimento do outro, sofrer com ele, ser sinal de humanização.

O Ser Humano, instintivamente, luta pela vida e pela sua preservação; luta para que ela tenha qualidade e se possa prolongar ao máximo no tempo. Não é a eutanásia a negação disto mesmo? Será absolutamente seguro afirmar que é autêntica a manifestação de vontade dos doentes terminais que pedem a eutanásia? Nunca pode haver esta garantia absoluta.

Podem ser vários os fatores para “pedir a morte”: ideia instantânea, momento de desespero, intenção de viver sem dor e sem sofrimento, falta de carinho e de amor dos familiares e amigos, a solidão e o abandono.

A opção deve ser sempre pela vida e nunca pela morte. Morrer com dignidade não é programar a morte, mas programar a vida com condições humanamente dignas: a proximidade e o amor dos entes queridos, a ajuda dos cuidados que a medicina, hoje tão avançada, nos propõe e oferece.

Dizer sim à vida e não à legalização da eutanásia é afirmar que a vida é sagrada; é perceber que todos têm direito aos cuidados médicos e paliativos; é restabelecer a confiança na medicina e nos profissionais da saúde; é educar a sociedade para os valores do altruísmo, da solidariedade e da fraternidade; é construir uma sociedade que olha para a vida humana como dom inviolável.

 

Perguntas legítimas a uma proposta

É à luz do mistério pascal de Jesus Cristo que nós, os crentes, devemos encontrar o sentido para a vida e para o sofrimento. A vida comporta sempre sofrimento: dele não podemos fugir, mas nele encontramos um desafio que nos faz crescer em humanidade. A eutanásia não faz parte do projeto da vida cristã. Porém, o assunto em questão não se esgota na perspetiva religiosa cristã.

Como vemos pela definição de “Eutanásia”, os defensores da sua legalização propõem que evitemos o sofrimento inútil, através de uma morte digna e assistida. Surgem perguntas legítimas a esta proposta.

O que será sofrimento inútil e por isso mesmo intolerável? O que comporta ele para além da dor, e como se pode medir para avaliar? Num contexto, onde «o conhecimento científico duplica praticamente de quatro em quatro anos» (Lucien Israel, Contra a Eutanásia, Paulus, 2016, p. 22), e onde os cuidados paliativos mais eficazes e o avanço da medicina encontram novas respostas à dor, como se definirão as fronteiras do “sofrimento inútil”? Como conciliam a dita liberdade de morrer com o dever de matar? Quem garante o rigor e a não corrosão das fronteiras da ética e da deontologia de cuidar da vida e de a não matar e o uso e o abuso de ‘eutanasiar’? Não haverá também nesta questão a aplicação da regra comum que a ‘oferta’ aumenta a ‘procura’ e que negociar a vida pode ser uma porta aberta para a sua banalização? Não será que ‘a vontade de morrer’ de muitos doentes apenas exprime estados patológicos superáveis perfeitamente e de vários modos?

 

Equipas médicas, doentes e cuidadores

Com todo respeito pelos que divergem desta compreensão da vida e procurando fazer caminho com todos eles na busca das melhores respostas para os problemas em aberto da dor e do sofrimento humanos, parece-me devermos concluir que só o que humaniza responde às questões humanas. Nesta perspetiva, e porque a Medicina não é uma ciência reduzida a máquina de elaborar diagnósticos e prescrever medicamentos, importa que o paciente possa depositar a sua confiança na consciência do seu médico e da equipa que com ele o trata. Claro, que a confiança advém de vários fatores técnico-profissionais; mas nunca o paciente com plena consciência se alheia ou prescinde da humanidade médica.

Neste âmbito, o médico não é apenas mandatário de maiorias sociológicas que fazem e desfazem Leis, nem das disposições subjetivas impostas pelos seus pacientes; é uma pessoa de consciência e com exigências deontológicas previamente assumidas. A confiança no ato médico gera a segurança do paciente em momentos muito vulneráveis e descompensados das suas vidas, por isso as balizas inegociáveis da vida devem ser dados adquiridos da ética em que se fundamentam os valores civilizacionais da Dignidade da Pessoa Humana.

Perante a dor humana e com as possibilidades paliativas atuais, em alguns casos é legítima a pergunta: Quem sofre mais, o doente, ou aqueles que o rodeiam, incluindo os seus cuidadores e entes queridos em situação de perca? O valor da Vida não merecerá de todos esta partilha com o paciente?

Certamente, os médicos e suas equipas têm o dever de nunca se renderem à morte, mas de infundirem ao doente esperança, vontade e força de lutar; atitudes assentes no valor da confiança médica, pois, se «existem doenças incuráveis, não existem doenças intratáveis».

Numa Europa e num País envelhecido, nunca poderemos evitar legitimidade da pergunta: e se a eutanásia e tudo o que gira à sua volta evolui para uma «solução económica» e «uma solução técnica» para um dos maiores problemas da atualidade e parece que do seu futuro? Será desonesta esta interrogação? É que nesta questão da negociabilidade da Vida Humana, sabe-se como começa, mas nunca se sabe como acaba. Que o diga o século XX.

 

+ Francisco José Senra Coelho
Arcebispo de Évora

 

Nota: Artigo publicado na Revista Bíblica – N.º 369