HOMILIA MISSA CRISMAL
Dia 17-III-2025
«O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque me ungiu»
- «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu», repete Jesus na sinagoga de Nazaré (Lucas 4,18), assumindo sobre si a unção e a missão de Isaías. Jesus levantou-se para fazer a leitura e de seguida sentou-se para fazer o comentário à leitura. E «todos tinham os olhos fixos nele!», num misto de espanto, de encanto e de esperança (Lucas 4,20), informa o narrador. Foi breve e intensa a homilia de Jesus, somente disse: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir» (Lucas 4,21).
Neste «Hoje» pronunciado por Jesus o tempo deixa de ser o fio tecido e a tecer de chrónos, o fio dos dias e dos anos, para se concentrar neste único Hoje, termo técnico, clássico, nas homilias dos Padres Gregos, em que cai sobre nós a Palavra de Deus, propondo-nos tudo, hoje e aqui, afinal o Tempo da Graça, do encontro com a iniciativa do Amor Primeiro de Deus. A este Tempo de Deus chamamos Kairos. Tempo da graça!
«O Espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu»,( Lc 4, 18). É assim que nós Hoje, convocados pelo Espírito, reunidos em Presbitério, recebemos de Jesus Cristo as mesmas palavras que Ele próprio recebeu do Profeta Isaías e a que deu sentido pleno. «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu» constitui, de facto, a maneira mais bela e profunda do presbitério arquidiocesano poder afirmar em uníssono a sua identidade diaconal, porque servir é a nossa vocação. É mesmo a única maneira de nós podermos dizer quem verdadeiramente somos, e assim centrados em Nosso Senhor Jesus Cristo, renovarmo-nos na nossa Identidade.
Diz-nos o Livro do Apocalipse: «Graça e paz […] da parte de Jesus Cristo, Aquele que nos ama, que nos libertou dos nossos pecados com o seu sangue, e fez de nós um Reino de Sacerdotes» (Apocalipse 1,4-6), respondendo e cumprindo a lição do Livro do Êxodo 19,6, em que Deus prometia: «Farei de vós um Reino de Sacerdotes». Guardemos connosco, Hoje, amados irmãos, esta unção, sejamos este reino de sacerdotes, pois somos um presbitério de Ungidos.
Ungido diz-se em hebraico Mashîah, e em grego Christós, termos que, em português, soam Messias e Cristo. O Ungido por excelência é, então, Cristo, Jesus Cristo, Jesus Ungido. Se o Ungido é Cristo, então nós somos outros Cristos, porque somos igualmente Ungidos. E se somos outros Cristos, então a referência da nossa maneira de viver terá de ser Cristo. Temos, então, de nos revestir de Cristo (Romanos 13,14; Gálatas 3,27; Colossenses 3,12-14), de fazer nosso o estilo de vida de Cristo, manso e humilde, orante, feliz, evangelizador, apaixonado, pobre, despojado, ousado, próximo e dedicado. N’Ele temos de nos centrar e sempre recentrar. Só assim, configurados com Cristo, cristificados, podemos viver e agir in persona Christi Capitis ou in persona Christi Servitoris, na pessoa de Cristo Cabeça do seu Corpo, que é a Igreja, ou na pessoa de Cristo Servo do seu Corpo, que é a Igreja. É assim que renovamos hoje, nesta Quinta-Feira Santa, a nossa identidade Sacerdotal e Diaconal.
- Sigamos o pensamento do Papa Francisco, pronunciado na Missa Crismal, na Basílica de São Pedro a 6 de abril de 2023, que cito: «Depois da primeira «unção» que aconteceu no ventre de Maria, o Espírito desceu sobre Jesus no Jordão. Em seguida, como explica São Basílio, «cada ação [de Cristo] gozava da presença do Espírito Santo». [3] Pois, com o poder daquela unção, Ele pregava e realizava sinais, em virtude daquela unção «emanava d’Ele uma força que a todos curava» ( Lc 6, 19). Jesus e o Espírito atuam sempre juntos, como se fossem as duas mãos do Pai – assim o diz Santo Ireneu – que, estendidas para nós, nos abraçam e levantam. E, por elas, foram marcadas as nossas mãos, ungidas pelo Espírito de Cristo. Sim, irmãos, o Senhor não Se limitou a escolher-nos e chamar-nos, mas infundiu em nós a unção do seu Espírito, o mesmo que desceu sobre os Apóstolos.
Fixemos então o nosso olhar nos Apóstolos. Jesus escolheu-os e, à sua chamada, deixaram os barcos, as redes, a casa, afinal tudo o que possuíam. A unção da Palavra mudou-lhes a vida. Com entusiasmo, seguiram o Mestre e começaram a pregar, convencidos que, depois, realizariam coisas ainda maiores; até que chegou a Páscoa. Parece que então tudo ficou suspenso: chegaram a negar e abandonar o Mestre, a começar por Pedro e os Apóstolos.
Puderam dar-se conta do grande desajustamento entre o projeto deles e o de Jesus, e perceberam que não O tinham compreendido: a frase «não conheço esse homem» (Mc 14, 71), que Pedro alegou no pátio do sumo sacerdote depois da Última Ceia, para vários Padres da Igreja, não é mera defesa impulsiva, mas uma admissão de ignorância espiritual: ele e os outros talvez estivessem à espera duma vida de sucessos atrás dum Messias que arrastava multidões e fazia prodígios, não reconheciam o escândalo da cruz, que esfarelou as suas certezas. Jesus sabia que eles, sozinhos, não conseguiriam e, por isso, prometeu-lhes o Paráclito. E foi precisamente aquela «segunda unção», no Pentecostes, que transformou os discípulos, levando-os a apascentar o rebanho de Deus, e já não a si mesmos.
Irmãos, um itinerário semelhante abraça a nossa vida sacerdotal e apostólica. Também para nós houve uma primeira unção, com início numa chamada cheia de amor que nos arrebatou o coração. Por ela, soltamos as amarras e, sobre um genuíno entusiasmo, desceu a força do Espírito que nos consagrou. Depois, segundo os tempos de Deus, havia de chegar para cada um a etapa pascal, que marca a hora da verdade. Trata-se dum momento de crise, que possui várias formas. A todos nos sucede, mais cedo ou mais tarde, experimentar desilusões, cansaços e fraquezas, com o ideal que parece diluir-se perante as exigências da realidade, substituído por uma certa rotina; e algumas provações – difíceis de imaginar antes – fazem aparecer a fidelidade mais incómoda do que outrora. Esta etapa – a da tentação, da prova que todos nós tivemos, temos e teremos – esta etapa representa, para quem recebeu a unção, um cume decisivo. Dele, pode-se sair mal, deixando-se planar rumo a uma certa mediocridade, arrastando-se cansado numa «normalidade» cinzenta onde se insinuam três perigosas tentações: a da acomodação, em que a pessoa se contenta com o que pode fazer; a da substituição, em que se tenta «recarregar» o espírito com algo diferente da nossa unção; a do desânimo – a mais comum –, em que, insatisfeitos, se avança por inércia. E aqui está o grande risco: permanecem intactas as aparências – sou sacerdote, sou padre –, enquanto a pessoa se fecha em si mesma e conduz a vida na apatia; a fragrância da unção deixou de perfumar a vida, e o coração, em vez de se dilatar, restringe-se envolvido pelo desencanto.
Mas toda a crise pode tornar-se também e, dom de conversão, um ponto de viragem no sacerdócio, a «etapa decisiva da vida espiritual, em que se deve efetuar a última escolha entre Jesus e o mundo, entre a heroicidade da caridade e a mediocridade, entre a cruz e um certo bem-estar, entre a santidade e uma honesta fidelidade ao compromisso religioso, sobretudo para os Presbíteros que vivem o seu ministério num carisma fundacional a vida Religiosa.
Como lembra o Papa, com a ajuda do Espírito Santo: é o tempo para nós, como o foi para os Apóstolos, duma “segunda unção”, tempo duma segunda chamada que devemos escutar para receber a segunda unção, em que se acolhe o Espírito não sobre o entusiasmo dos nossos sonhos, mas na fragilidade da nossa realidade. É uma unção que mostra a verdade no mais fundo de nós mesmos e que permite ao Espírito ungir as nossas fragilidades, os nossos cansaços, a nossa pobreza interior».
- O espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu: enviou-me para levar a boa-nova» (Is 61, 1; cf. Lc 4, 18-19) e levar – lê-se no prosseguimento da profecia – libertação, cura e graça; numa palavra, para levar harmonia onde não há. Pois, como diz São Basílio Magno, «o Espírito de esperança e harmonia». Tudo o que o Espírito Santo deseja é criar harmonia, principalmente através daqueles sobre quem derramou a sua unção.
Irmãos, construir a harmonia entre nós não é tanto um método bom, para que a comunidade eclesial caminhe melhor, nem é questão de estratégia ou de cortesia, mas é sobretudo uma exigência interna na vida do Espírito, é algo que brota da Esperança de que não vamos sós, mas acompanhados pelo Espírito Santo, Deus Amor, sempre gerados da plena harmonia trinitária.
A harmonia não é apenas uma virtude entre outras. São Gregório Magno escreve: «Quanto valha a virtude da concórdia demonstra-o o facto de que, sem ela, todas as outras virtudes não valem absolutamente nada». Ajudemo-nos, irmãos, a conservar a harmonia, conservar a harmonia no Presbitério e na Igreja – este seria o meu contínuo dever de casa, para cada um de nós. O mundo vive terríveis feridas de desencontros violentos, cruéis e mortais. De novo, somos convidados a mostrar a beleza que salva, a harmonia que brota da presença do Espírito de Deus em nós.
Mas também vós, Fiéis Leigos, batizados e crismados, sois outros Cristos, porque fostes também Ungidos com o óleo do Crisma, que recebe o seu nome de Cristo como referimos. Cristo significa Ungido e Crisma significa Unção. Também vós, amados Fiéis Leigos, fostes Ungidos na fronte, no Batismo e na Confirmação, com o óleo do Crisma. Além de Ungidos na fronte, no Batismo e na Confirmação, os Sacerdotes foram ainda Ungidos nas mãos com o mesmo óleo do Crisma, e o Bispo foi-o ainda na cabeça. Também as igrejas e os altares são ungidos com o óleo do Crisma no dia da sua Dedicação.
- É este óleo do Crisma, com que todos somos ungidos no coração, identificando-nos assim com Cristo, que vai ser, nesta Missa Crismal, confecionado e consagrado pelo Bispo, com o testemunho e cooperação dos Sacerdotes. Vão igualmente ser benzidos o óleo dos enfermos, destinado a servir de remédio e de alívio aos doentes, e o óleo dos catecúmenos, destinado a preparar e dispor os catecúmenos para o Batismo.
O óleo do Crisma que vamos consagrar, e os óleos dos enfermos e dos catecúmenos que vamos benzer, constituem, no meio de nós, um autêntico manancial ou programa de vida. Igual ao de Cristo. Outros Cristos, Ungidos no coração, para levar o anúncio do Evangelho a todos os nossos irmãos. Se somos outros Cristos, Ele está connosco, em nós, no meio de nós. A messe e a plantação são d’Ele. A Ele a honra, a glória e o louvor para sempre. Ámen.
- Em Ano Santo, com a chave de Peregrinos de Esperança, dirigindo-me a cada Sacerdote Ministerial, concluo com as Palavras do Santo Padre «Obrigado! Obrigado pelo vosso testemunho, obrigado pelo vosso serviço; obrigado por tanto bem escondido que fazeis, obrigado pelo perdão e a consolação que ofereceis em nome de Deus: perdoai sempre, por favor, nunca negueis o perdão; obrigado pelo vosso ministério, que muitas vezes se desenrola no meio de tantas fadigas, incompreensões e pouco reconhecimento. Irmãos, o Espírito de Deus, que não desilude quem coloca n’Ele a própria confiança, vos encha de paz e leve a bom termo aquilo que em vós começou, para serdes profetas da sua unção e apóstolos de harmonia».
Que pela abertura do coração ao Espírito Santo, a harmonia se reforce e renove sempre no Presbitério Eborense. Que a nossa Celestial Padroeira Nossa Senhora da Conceição interceda por nós!
+ Francisco José Senra Coelho
Arcebispo de Évora