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31 Mar 2024

Sábado Santo I Solene Vigília Pascal: “Vale sempre dar a vida e amar sempre porque a vida e o Amor são as palavras finais da História!”, disse o Arcebispo de Évora (com vídeo e com homilia)

A Semana Santa 2024 foi vivida em pleno na Catedral de Évora, assim como por toda a Arquidiocese.

Neste Sábado Santo, dia 31 de março, pelas 21h30, na Catedral, D. Francisco José Senra Coelho presidiu à Solene Vigília Pascal, que foi concelebrada pelo Arcebispo de Évora emérito, D. José Alves, por alguns cónegos do Cabido da Catedral eborense, por vários presbíteros, servida por alguns diáconos e contou com a presença de consagrados e consagradas da Arquidiocese, e com os seminaristas dos Seminários da Arquidiocese.

A Solene Vigília Pascal, animada liturgicamente pelo coro Stella Matutina e transmitida em direto pelos canais digitais da Arquidiocese de Évora, numa produção do Departamento de Comunicação com o apoio da Comunidade Canção Nova de Évora, contou com a presença de muitos fiéis que encheram a Catedral eborense.

A Vigília das vigílias começou na escadaria da Catedral, com a bênção do lume novo.

À homilia (ler abaixo na íntegra), o Prelado eborense começou por dizer que “a morte foi vencida. Hoje, começa uma nova criação. Hoje, recebemos um novo sopro de vida, a ressurreição de Jesus Cristo é sempre dita no presente, é sempre actual, ultrapassa as limitações do espaço e do tempo, é meta-histórica, enche a História Universal de um novo significado, uma experiência pascal que designamos de salvação (eterna).”

“Importa que nos deixemos surpreender pelo anúncio pascal. Contemplemo-lo como se fosse a primeira vez”, apelou o Arcebispo de Évora.

“Jesus Cristo foi ressuscitado pelo poder do Pai e pelo Espírito Santo. O baptismo e a eucaristia tornam-nos participantes da Vida Nova da Páscoa. Somos homens e mulheres ressuscitados, vivendo com todos, porém com critérios e valores diferentes face a muitos aspectos da vida, afinal fruto da Vida Nova recebido na fonte baptismal e mantido na Eucaristia”, explicou o Prelado.

“A fé é pascal, ou seja, propõe-nos a inteira unificação de todas as dimensões da vida. A nossa meta, desde agora, é a plenitude da vida, a vida eterna, de modo que, desde o Batismo nos é proposto viver como homens e mulheres ressuscitados por dentro, com este gérmen de vida nova. Para os Cristãos a morte, todas as mortes e renúncias ou sacrifícios de vida, valem pela força do Amor que venceu a morte. Por isso, vale sempre dar a vida e amar sempre porque a vida e o Amor são as palavras finais da História!”, sublinhou D. Francisco Senra Coelho.

“A experiência pascal é uma experiência comunitária, nunca uma experiência apenas individual. O anúncio pascal faz de nós Igreja em saída, que mostra o rosto novo de uma mãe com o coração aberto para todos”, sublinhou o Arcebispo de Évora.

“Vem, Senhor Jesus, permanece connosco, para que Te mostremos na Tua beleza ao mundo que afinal Te procura”, concluiu a homilia D. Francisco Senra Coelho.

 



 

HOMILIA DA VIGILIA PASCAL

30 – III – 2024

 

1. A morte foi vencida. Hoje, começa uma nova criação. Hoje, recebemos um novo sopro de vida, a ressurreição de Jesus Cristo é sempre dita no presente, é sempre actual, ultrapassa as limitações do espaço e do tempo, é meta-histórica, enche a História Universal de um novo significado, uma experiência pascal que designamos de salvação (eterna).

Jesus não viveu uma ressuscitação como Lázaro, que ressuscitou para o tempo e para o espaço, na contingência do tempo que envelhece e do espaço que limita. Ele ressuscita para uma vida nova, uma vida diferente, uma vida no Espírito, a vida do corpo glorioso. Essa vida que chegou até nós pelo baptismo em gérmen e fonte de ressurreição que em nós permanece. Fonte de ressurreição capaz de nos fermentar, levedar e transformar.

O mistério cristão de salvação possui, como acreditamos e sabemos, uma ligação umbilical com o acontecimento pascal. Esta constatação, que, entre nós, até pode parecer óbvia, precisa de ser recordada com frequência, geração após geração, para não fazermos do cristianismo somente uma ideia filosófica, uma ideologia, mais ou menos ajustada às coisas da terra, mas experimentemos o Dom da Vida Nova através do encontro íntimo com o Ressuscitado. Porque o mistério pascal é a base e a coroa da nossa salvação, é nele que nos refazemos interiormente, renascendo na nossa liberdade interior, pois o Seu Amor por cada um de nós é sem limites. Amor que não nos permite ter medo. Amor e liberdade é isso mesmo, não ter medo.

Importa que nos deixemos surpreender pelo anúncio pascal. Contemplemo-lo como se fosse a primeira vez. Contemplemo-lo com espanto, com capacidade de contemplação. Olhemos para ele com essa capacidade que só nós temos de olhar para longe, muito longe, sem nada que nos tolha a liberdade e vermos o sol que nasce na festa crepuscular da madrugada, na festa das luzes do céu. Contemplemo-lo na beleza da pureza da verdade cristalina.

2. O Evangelho não narra a Ressurreição como um momento cronológico, uma vez que apresenta apenas os sinais do túmulo vazio e da explicação angélica para o que aconteceu, bem como a missão que isso acarreta para a vida dos cristãos que se encontram com esta nova realidade. Lucas pretende levar os seus leitores a fazer precisamente o mesmo caminho das mulheres; a cruz e a sepultura de Jesus conduzem necessariamente ao lugar onde Ele ficou depositado; é verdade que, várias vezes, Jesus tinha falado em ressurreição, mas os discípulos não compreendiam o significado de tais palavras (cf Lc, 18-34). Lucas identifica os mensageiros como «dois homens com vestes resplandecentes» (Lc 24, 4; cf 9, 29). Esta característica leva-nos à transfiguração no Tabor, serve ao evangelista para demonstrar a origem divina da mensagem: só Deus pode dar resposta à perplexidade humana diante da morte. À ressurreição de Jesus chega-se pelo anúncio e não pelo exercício dedutivo da razão humana. Assim acontecerá com Pedro e com os discípulos de Emaús que reconhecerão Jesus pelo anúncio e pelos sinais da sua presença (cf. Lc 24,13-35.36-49).

Jesus Cristo foi ressuscitado pelo poder do Pai e pelo Espírito Santo. O baptismo e a eucaristia tornam-nos participantes da Vida Nova da Páscoa. Somos homens e mulheres ressuscitados, vivendo com todos, porém com critérios e valores diferentes face a muitos aspectos da vida, afinal fruto da Vida Nova recebido na fonte baptismal e mantido na Eucaristia. Deste modo, podemos dirigir o coração para os Céus: “aspirai às coisas do alto (…) Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra”. Ao aceitarmos esta realidade essencial da nossa fé baptismal – que hoje dentro de momentos iremos renovar – tornamo-nos aspirantes às coisas do alto, às realidades espirituais e divinas; aos critérios de Deus, às bem-aventuranças, ao mandamento novo, a uma outra dimensão da vida mas que dá sentido a esta nossa vida aqui no tempo e neste mundo. A linguagem pode ser equivoca, pois não estamos a separar em modo dualista as coisas da terra e as coisas do alto. Não são mundos opostos ou mutuamente excluídos. A fé é pascal, ou seja, propõe-nos a inteira unificação de todas as dimensões da vida. A nossa meta, desde agora, é a plenitude da vida, a vida eterna, de modo que, desde o Batismo nos é proposto viver como homens e mulheres ressuscitados por dentro, com este gérmen de vida nova. Para os Cristãos a morte, todas as mortes e renúncias ou sacrifícios de vida, valem pela força do Amor que venceu a morte. Por isso, vale sempre dar a vida e amar sempre porque a vida e o Amor são as palavras finais da História!

Assim, somos frutos da Páscoa, porque fomos mergulhados nas águas do baptismo, porque estamos confirmados pelo dom espiritual mais sublime, e temos acesso a todos os demais Sacramentos, sobretudo porque somos alimentados pela Eucaristia, o pão para um mundo novo que construiremos na nossa coerência, dedicação e sinal profético na mensagem da nossa vida. A presença viva do Ressuscitado está no mundo connosco e por meio de nós. A experiência sacramental é sempre uma realidade pascal. Como diz S. Leão Magno: “O que no nosso Redentor era visível, passou para os seus sacramentos” a sua corporeidade permanece no mistério de cada sacramento, permanecendo os seus efeitos invisíveis. É a nossa participação no absolutamente outro da Vida Nova, que nos faze encontrar Cristo, alimentar-nos de Cristo, vivermos do mundo sem ser do mundo, sendo, porém, do tempo.

Por isso, celebramos o núcleo da nossa fé: Cristo vive; e quer-nos vivos! Assumidamente vivos na nossa cidadania com uma vida que brilha, transparece e testemunha. Nele se fazem novas todas as coisas: a luz, a água, o pão, o vinho, a mesa compartilhada, a alegria renovada e a esperança presente em todos os corações. Afinal em cada um dos sacramentos, na Eucaristia a plenitude aonde nos encontramos com o Senhor ressuscitado de modo pleno. Há de ser esta transformação através de cada um de nós, pedras vivas da Igreja sacramento do mundo que há de também transformar o mundo.

A experiência pascal é, porém, uma experiência que transcende o privativo, o íntimo. Se o é transcende-o pela experiência comunitária. Nunca uma experiência quando atinge a profundidade do coração humano permanece apenas individual. Perante a beleza, perante o fascínio, perante o encanto não cabemos em nós, anunciamos, compartilhamos, dizemos a quem amamos a descoberta que fizemos, eis a força do encontro com a beleza. Eis porque a beleza salvará o mundo.

O anúncio pascal faz de nós Igreja em saída, que mostra o rosto novo de uma mãe com o coração aberto para todos. O “nós” sinodal, proposto pelo Papa, impele-nos a festejar a fé a partir da comunicação do “nós” eclesial. Esta espiritualidade do “nós” remete-nos para a caminhada sinodal em curso na Igreja Católica e para a dinâmica pós-JMJ com os nossos jovens. É com esta alegria que na perene juventude do Cristo Ressuscitado, caminhamos na Páscoa, pois “Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura; as coisas antigas passaram e tudo foi renovado” (2Cor 5, 17). Somos nós a novas criaturas. Somos nós a presença da Páscoa do mundo. Somos nós testemunhos da esperança. Somos nós em quem Cristo deposita a sua esperança. É em nós que Ele acredita.

Senhora Nossa e Mãe do Ressuscitado, permanece connosco em Cenáculo e ensina-nos a confiar, para que certos das promessas do mestre, tenhamos a alegria de viver contigo a manhã de Pentecostes que chegará aí daqui a 50 dias.

Vem, Senhor Jesus, permanece connosco, para que Te mostremos na Tua beleza ao mundo que afinal Te procura.

+ Francisco José Senra Coelho

Arcebispo de Évora

 

 

29 Mar 2024

Sexta-feira Santa I Celebração da Paixão do Senhor: “Jesus tem sede de nós: da nossa fidelidade, da nossa libertação e do nosso amor”, disse o Arcebispo de Évora (com fotos, com vídeo e homilia)

A Semana Santa 2024 está a ser vivida em pleno na Catedral de Évora, assim como por toda a Arquidiocese.

Nesta Sexta-feira Santa, dia 29 de março, pelas 15h00, na Catedral, o Prelado Eborense presidiu à celebração da Paixão do Senhor.

A Eucaristia, animada liturgicamente pelo coro Stella Matutina e transmitida em direto pelos canais digitais da Arquidiocese de Évora, numa produção do Departamento de Comunicação com o apoio da Comunidade Canção Nova de Évora, contou com a presença de muitos fiéis que encheram a Catedral eborense.

À homilia (ler abaixo na íntegra), o Prelado eborense começou por dizer que “Jesus consumou a Sua missão e consumiu a Sua vida: consumiu a Sua vida ao consumar a Sua missão. Estará tudo terminado?”, questionou, respondendo de seguida: “É óbvio que Jesus morreu. Mas os primeiros cristãos não entenderam a Sua morte como o fim de tudo, mas o início de uma Vida Nova. A Liturgia Pascal, como expressão da Fé da Igreja, garante que Jesus «destruiu a morte».”

“Desde sempre, a Igreja acredita ter nascido não «do lado morto», mas do «lado adormecido» de Cristo. Também nós, adormecendo em Cristo, com Ele ressuscitaremos”, sublinhou o Arcebispo de Évora.

“Acresce que a «entrega do Espírito» não tem de ser um indicador de morte. «Entregar o Espírito» (a Deus e aos homens) é uma poderosa demonstração de vida, é dar a vida no gesto maior do Amor: “Não há maior prova de amor do que dar a vida pelo irmão”(Jo 15, 13-15). Jesus consumiu a sua vida dando a vida, morrendo para si e dando a vida pelo irmão. Hoje Ele entrega a sua vida depositando-a nas mãos do Pai. Eis o sentido da morte cristã. Haja em vista que, na Bíblia, o Espírito é sinónimo de vida, pelo que entregar o Espírito, pneuma, é entregar a vida (cf.  Jo 6, 63). Não foi o que Jesus sempre fez?”, questionou D. Francisco Senra Coelho, que acrescentou: “Eis-nos perante o desafio de revelar um novo rosto de Igreja, que como Mãe de coração aberto, acolhe e dá a vida. Eis o desafio de vivermos nesta Semana Santa de 2024, o mandato de Jesus, assumindo no nosso compromisso pastoral: “Por isso reconhecerão que sois meus discípulos: Se vos amardes uns aos outros como eu vos amo” (Jo 13, 35).”

“Jesus é a «vida para os mortos» e também para todos nós quando estamos interiormente mortos pelo pecado, Ele é capaz de nos ressuscitar e oferecer a Vida Nova”, sublinhou o Prelado eborense.

“Jesus tem sede de nós: da nossa fidelidade, da nossa libertação e do nosso amor. Que nós, os seus Discípulos do Século XXI, tenhamos sede d’Ele como Ele tem sede de nós. Na Sua morte, disponhamo-nos a transformar a nossa vida e a sermos testemunhas missionárias da humanização e da redescoberta da autêntica caridade, pela dádiva da nossa vida”, apelou D. Francisco Senra Coelho, concluindo a homilia: “Ele que é a vida eterna. Ele que é o amor diz-te porque te amo nunca morrerás. Pela dádiva da nossa vida encontremos a Vida”.

A Celebração da Paixão do Senhor contou ainda com a Adoração da Cruz e a Comunhão. O Ofertório foi para os lugares santos da Palestina.

 


 


 

HOMILIA DA PAIXÃO DO SENHOR

29-III-2024

 

1. Tudo está consumado (cf. Jo 19, 30). E todo Ele está consumido. Jesus consumou a Sua missão e consumiu a Sua vida: consumiu a Sua vida ao consumar a Sua missão. Estará tudo terminado com o túmulo fechado? É óbvio que Jesus morreu. Mas os primeiros cristãos não entenderam a Sua morte como o fim de tudo, mas o início de uma Vida Nova, morreu para viver. A Liturgia Pascal, como expressão da Fé da Igreja, garante que Jesus «destruiu a morte». À Luz da mesma Fé, Santo Agostinho ensina que Jesus, com a Sua morte, matou a morte: «em Si, Ele matou a morte»!

Guiados por São João, que espelha a Fé das primeiras comunidades cristãs, no relato que ouvimos não é dito – explicitamente – que Jesus morreu. O que ouvimos, nesta Sexta-Feira Santa, é que, após ter dito que «tudo estava consumado», Jesus «inclinou a cabeça» e «entregou o Espírito» («parédôken tò Pneuma») [Jo 19, 30]. Sucede que inclinar a cabeça é próprio não só de quem morre, mas também de quem adormece para acordar e viver de novo. Desde sempre, a Igreja acredita ela mesma ter nascido não «do lado morto», mas do «lado adormecido» de Cristo. Também nós, adormecendo em Cristo, com Ele ressuscitaremos.

Acresce que a «entrega do Espírito» não tem de ser um indicador de morte. «Entregar o Espírito» (a Deus e aos homens) é uma poderosa demonstração de vida, é dar a vida no gesto maior do Amor: “Não há maior prova de amor do que dar a vida pelo irmão”(Jo 15, 13-15). Jesus consumiu a sua vida dando a vida, morrendo para si e dando a vida pelo irmão. Hoje Ele entrega a sua vida depositando-a nas mãos do Pai. Eis o sentido da morte cristã. Haja em vista que, na Bíblia, o Espírito é sinónimo de vida, pelo que entregar o Espírito, pneuma, é entregar a vida (cf.  Jo 6, 63). Não foi o que Jesus sempre fez? Eis-nos perante o desafio de revelar um novo rosto de Igreja, que como Mãe de coração aberto, acolhe e dá a vida. Eis o desafio de vivermos nesta Semana Santa de 2024, o mandato de Jesus, assumindo no nosso compromisso pastoral: “Por isso reconhecerão que sois meus discípulos: Se vos amardes uns aos outros como eu vos amo” (Jo 13, 35).

2. É verdade que Ele foi dado como morto (cf. Jo 19, 33) e sepultado (cf. Mc 15, 46). Espantoso é, todavia, o significado teológico atribuído a este facto biológico. É que Jesus — mesmo depois de tudo ter consumado e de todo Ele Se ter consumido — não parou de Se entregar. São João é o único evangelista que nos dá conta do soldado que «picou» o «lado» de Jesus com uma lança (cf. Jo 19, 34). Sim, «picou». Segundo os exegetas do Novo Testamento, a tradução mais fiel do que se encontra no texto: «ényxen» é o aoristo do verbo «nýssô», que quer dizer «picar» ou «perfurar». Seria uma espécie de certidão de óbito daquele tempo: de facto, está morto! Habitualmente, as traduções dizem que o soldado «trespassou» o lado de Jesus. E, no fundo, este acto de «picar» foi um autêntico «trespasse»: de um lado para o outro; João testemunha, atesta que do lado de dentro jorrou para o lado de fora, do lado de Deus para o lado do homem.

É do lado de dentro (isto é, do lado de Deus) que brotam as fontes da salvação: o «sangue e a água» (cf. Jo 19, 34). Mas como seria possível dar mais quem já tinha dado tudo? Acontece que Jesus é dádiva sem fim, é dádiva até para lá do fim. O «sangue e a água» que correm do Seu lado aberto continuam a escorrer pelo mundo inteiro: a água para lavar e o sangue para redimir. A água sempre foi vista como alusão ao sacramento do Baptismo e o sangue  sempre foi acolhido como símbolo do sacramento da Eucaristia.

Admirável é que, uma vez mais, se faça sobressair uma luminosa afirmação de vida. A intenção de espetar a lança — e trespassar o corpo — era para testar a morte. Só que aquele coração estava repleto de vida:  da vida que, pelo Seu Filho, Deus ofereceu à humanidade. Como recordou o Papa Pio XII foi «do coração ferido do Redentor que nasceu a Igreja». O coração sinaliza o imenso amor «que moveu o nosso Salvador a celebrar o Seu místico matrimónio com a Igreja».

É curioso notar como também Eva, a primeira mulher da humanidade, fora constituída a partir do lado (tselá) do primeiro homem adormecido (cf. Gen 2, 21-22). Não é, portanto, em vão que o Catecismo sufraga esta conexão: «Da mesma forma que Eva foi formada do lado de Adão adormecido, também a Igreja nasceu do coração trespassado de Cristo morto na Cruz».

3. Amanhã, Sábado Santo, com Maria, Mãe e Modelo de todos nós, Discípulos Missionários, iremos acompanhar Jesus na sepultura. Também esta é encarada não como um lugar de aniquilamento, mas de repouso. Os Cristãos chamaram na antiguidade e continuam a denominar aos campos onde são sepultados os mortos “cemitérios”, que significa “dormitórios”, consequência do sono de Cristo. Tal como Deus repousa após a obra da criação (cf. Gen 2, 2), também o Filho de Deus repousa após a obra da redenção. Viveremos para sempre o oitavo dia. Neste Seu repouso, Jesus está em plena actividade. Ele vai aos infernos, ou seja aos inferiores da criação, visitar os mortos. Como refere um conhecido texto do século IV, Jesus «faz questão de visitar os que estão mergulhados nas trevas e na sombra da morte». Jesus é a «vida para os mortos» e também para todos nós quando estamos interiormente mortos pelo pecado, Ele é capaz de nos ressuscitar e oferecer a Vida Nova.

Vida Nova que consiste exatamente neste dar a vida, sabendo que é na morte para o nosso egoísmo, autossuficiência e orgulho que havemos de encontrar a chave da Vida Nova, a alegria que nos vem de dar a vida, de nos cruzarmos com os olhos brilhantes daqueles que beneficiam da nossa vida, de nos tornarmos úteis com a dádiva da nossa existência. Viver para nós, enrolados em nós é a experiência da solidão absoluta e da tristeza.

Santo Agostinho percebeu que Jesus, ao nascer para morrer, nasceu para viver a nossa morte. «Participando da nossa morte, torna-nos participantes da Sua vida». Jesus muda tudo: Ele vai ao ponto de nos «vitalizar» na própria morte!

A vida de Jesus não termina, mas é transfigurada pelo Espírito que nos entrega «da parte do Pai» (Jo 15, 26). É no Espírito que Jesus vive eternamente. É no Espírito que também nós viveremos para sempre. Percebemos, irmãos e irmãs, que a sede de Jesus antes do último suspiro (cf. Jo 19, 28) não é sede do fel e do vinagre que Lhe foram dados (cf. Jo 19, 29.30). Jesus tem sede de nós: da nossa fidelidade, da nossa libertação e do nosso amor. Que nós, os seus Discípulos do Século XXI, tenhamos sede d’Ele como Ele tem sede de nós. Na Sua morte, disponhamo-nos a transformar a nossa vida e a sermos testemunhas missionárias da humanização e da redescoberta da autêntica caridade, pela dádiva da nossa vida.

Ele que é a vida eterna. Ele que é o amor diz-te porque te amo nunca morrerás. Pela dádiva da nossa vida encontremos a Vida.

+ Francisco José Senra Coelho

Arcebispo de Évora

28 Mar 2024

Quinta-feira Santa, Missa Vespertina da Ceia do Senhor: “Saibamos ser construtores duma civilização de Paz”, disse o Arcebispo de Évora (com fotos, com vídeo e com homilia)

A Semana Santa 2024 está a ser vivida em pleno na Catedral de Évora, assim como por toda a Arquidiocese.

Nesta Quinta-feira Santa, dia 28 de março, pelas 18h30, na Catedral, o Prelado Eborense presidiu à Eucaristia Vespertina da Ceia do Senhor.

A Eucaristia, animada liturgicamente pelo coro Stella Matutina e transmitida em direto pelos canais digitais da Arquidiocese de Évora, numa produção do Departamento de Comunicação com o apoio da Comunidade Canção Nova de Évora, contou com a presença de muitos fiéis que encheram a Catedral eborense.

À homilia (ler abaixo na íntegra), o Prelado eborense começou por dizer que “como acreditamos e sabemos, à Luz da Ressurreição de Cristo, o Cristianismo não é a recordação de um ausente, mas a contínua celebração de uma presença. Por tal motivo, nós cristãos não dizemos que Cristo viveu, mas que vive (cf. Act 25, 19)”.

“Esta nova presença de Cristo Ressuscitado, através da Sua corporeidade eclesial, Igreja Corpo de Cristo, ocorre especialmente na Eucaristia «fazei isto em memória de mim», (1 Cor 11, 24; Lc 22, 19), do mandamento da Missão «ide por todo o mundo e anunciai o Evangelho» (Mc 16, 15; Mt 28, 19) e do Mandamento do Amor «amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12; 13, 34)”, explicou D. Francisco Senra Coelho.

“Das suas próprias palavras depreende-se que Jesus está realmente presente naquele pão e naquele cálice. Pelo que há uma mudança de substância em tal pão e tal cálice”, prosseguiu o Arcebispo de Évora, acrescentando que “na Eucaristia, Cristo vem até nós e nós vamos até Cristo.”

“Experimentamos que a Igreja «vive da Eucaristia» porque vive de Cristo nela realmente presente. Para a Igreja, viver é sempre cristo-viver. É em Cristo que se estabelece um estreitíssimo vínculo entre a Igreja e a Eucaristia”, sublinhou o Prelado.

“Celebrar a Eucaristia implica uma identificação com Cristo, Aquele que nos deixou o Mandamento Novo do Amor, da Caridade e o exemplifica com o gesto forte e inequívoco do Lava-pés: «Assim como Eu Fiz, fazei vós também». Por isso a Eucaristia é indissociável do servir e do amar dando a vida. A Vivência da Eucaristia é afinal indissociável do testemunho de cada dia”, referiu D. Francisco Senra Coelho, acrescentando que “diretamente ligado ao sinal do “Lava-Pés” surge a edificação da justiça e o urgente serviço à edificação laboriosa do Dom da Paz”.

“Em Quinta-feira Santa imploramos o Dom da Paz para esta guerra espalhada por diversos países e continentes, uma guerra mundial aos pedaços, como designa o Papa. Longe de nós uma guerra global ou uma loucura nuclear! Saibamos ser com o nosso compromisso cristão, e através da nossa cidadania, construtores duma civilização de Paz. Que a Eucaristia seja pão partido para um mundo novo. Busquemos a Paz que nasce da Justiça e da Liberdade, nomeadamente a liberdade de consciência e da liberdade religiosa. Unamo-nos à Igreja sofredora e aos mártires com origem nas comunidades cristãs mais pobres. Que o seu sangue derramado pela intolerância da violenta seja sementeira do Reino de Deus na Paz, na Justiça e no Amor”, concluiu o Arcebispo de Évora.

A Missa da Ceia do Senhor contou com Rito do Lava-pés e terminou com a Adoração do Santíssimo Sacramento, que ficou exposto para a adoração dos fiéis.

 

 


 

HOMILIA CEIA DO SENHOR

28-III-2024

 

1. Como acreditamos e sabemos, à Luz da Ressurreição de Cristo, o Cristianismo não é a recordação de um ausente, mas a contínua celebração de uma presença. Por tal motivo, nós cristãos não dizemos que Cristo viveu, mas que vive (cf. Act 25, 19). Aliás, ao longo do Seu ensinamento, Jesus Cristo foi preparando os discípulos para a perenidade da Sua presença no mundo, «até ao fim dos tempos» (Mt 28, 20).

Esta nova presença de Cristo Ressuscitado, através da Sua corporeidade eclesial, Igreja Corpo de Cristo, ocorre especialmente na Eucaristia «fazei isto em memória de mim», (1 Cor 11, 24; Lc 22, 19), do mandamento da Missão «ide por todo o mundo e anunciai o Evangelho» (Mc 16, 15; Mt 28, 19) e do Mandamento do Amor «amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12; 13, 34). A presença real de Cristo na realidade do mundo atinge o seu ápice na Eucaristia. Porque é sobretudo na Eucaristia, como nos diz a 2ª Leitura, que se realiza o que Ele mandou fazer em Sua memória: comer o pão (cf. 1 Cor 11, 23-24; Lc 22, 19) e beber do cálice (cf. 1 Cor 11, 25; Mc 14, 23; Mt 26, 27).

Sucede que este pão já não é pão: é o Corpo de Jesus Cristo: «isto, ou (seja, o pão) é o Meu Corpo, que será entregue por vós» (1Cor 11, 24; Mc 14, 22; Mt 26, 26; Lc 22, 19). Do mesmo modo, este cálice já não é cálice: é o Sangue de Jesus Cristo: «isto (ou seja, o cálice) é o Meu Sangue da aliança, que vai ser derramado por todos» (Mc 14, 24; 1 Cor 11, 25; Mt 26, 28; Lc 22, 20).

Das suas próprias palavras depreende-se que Jesus está realmente presente naquele pão e naquele cálice. Pelo que há uma mudança de substância em tal pão e em tal cálice. Nestes, como reparou S. Paulo VI, «já não há o que havia anteriormente, mas outra coisa completamente diferente». Esta mudança de substância (transubstanciação) configura, ainda segundo o Papa Montini, «o maior dos milagres». São Cirilo de Jerusalém verbalizou com suprema precisão o que se passa: «Aquilo que parece pão não é pão, apesar do sabor que tem, mas sim o Corpo de Cristo; e o que parece vinho não é vinho, apesar de assim parecer ao gosto, mas sim o Sangue de Cristo». O que passamos a ter, como notou Santo Ambrósio de Milão, já não é o que a natureza formou, mas o que a bênção consagrou». Por conseguinte e como observa de novo Paulo VI, não nos devemos guiar «pelos sentidos, que testemunham as propriedades do pão e do vinho, mas sim pelas palavras de Cristo, que têm o poder de mudar, transformar e “transubstanciar” o pão e o vinho no Seu Corpo e Sangue». Isso significa que, na Eucaristia, Cristo vem até nós e nós vamos até Cristo.

Ao mandar comer o pão e beber o cálice em Sua memória (cf.1Cor 11, 24-25), Jesus está a admitir que a Ceia não termina naquela noite. A conversão do pão e do vinho no Corpo e Sangue do Senhor são possíveis porque – sublinha Karl Rahner – «a ceia não acabou». O que então se verificou nunca deixa de se verificar pois «insere-se no espaço e no tempo que são nossos». Daqui resulta que toda a realidade de Cristo «estará sempre eficazmente presente onde se realiza a Ceia». Xavier Zubiri, um existencialista cristão do século XX, apercebeu-se que na Eucaristia somos visitados pela «actualidade do pão feita actualidade de Cristo». Pelo que «o pão eucarístico é o Corpo de Cristo; é Cristo mesmo». Cingindo-nos à celebração da Missa, é real a presença de Cristo na Palavra, no ministério ordenado do Sacerdote, na Assembleia Litúrgica convocada e reunida. A presença real de Cristo não é um exclusivo do Pão e do Vinho consagrados como se as outras presenças fossem irreais, mas acontece por excelência na Eucaristia. A presença real de Cristo na Eucaristia não é a única, mas – avisa o Catecismo – «o modo da presença de Cristo na Eucaristia é único». Trata-se de uma presença substancial dado que, ela, torna presente Cristo completo, ou seja, o Ressuscitado.

Experimentamos que a Igreja «vive da Eucaristia» porque vive de Cristo nela realmente presente. Para a Igreja, viver é sempre cristo-viver. É em Cristo que se estabelece um estreitíssimo vínculo entre a Igreja e a Eucaristia.

Na continuidade de uma convicção muito antiga (retomada entre outros por Henri de Lubac e S. João Paulo II), dir-se-ia que «a Igreja faz a Eucaristia», porque sabe que «a Eucaristia faz a Igreja». A Igreja, ao celebrar a Eucaristia, celebra a presença real daquele que deu a vida por ela: o próprio Cristo (cf. Ef 5, 25). Assim, a Igreja é de Cristo e com Ele, “Mistério da Fé”. Dizer, por conseguinte, que a «Eucaristia faz a Igreja» é, no fundo, dizer que quem faz a Igreja é Cristo.  Se Cristo faz a Igreja entregando-Se por ela (cf. Ef 5, 25), então, ao fazer memória de Cristo, a Igreja na Eucaristia faz memória dessa entrega. Como assinalou o nosso Cardeal e Teólogo Português D. José Saraiva Martins «toda a existência de Cristo foi uma continua oferta sacrificial ao Pai pela salvação que Ele lhe tinha confiado. Ela teve, portanto, do início até ao fim, um valor expiatório, meritório e redentor». A entrega na Cruz é, porém, o máximo de tal sacrifício redentor. E esta entrega não está destinada a cessar, durando até ao fim dos tempos. Jesus quis que o Dom de Si mesmo na Cruz continuasse na Eucaristia; que o sacrifício pascal prosseguisse sob as espécies sacramentais pão e vinho.

São João Paulo II teve o cuidado de chamar a atenção para esta presença da Ressurreição. Com efeito, a Eucaristia, no momento em que «actualiza o único e definitivo sacrifício de Cristo na Cruz», «torna presente o mistério da Sua Ressurreição». É o que os nossos lábios afirmam na aclamação depois da Consagração: «Anunciamos Senhor, a Vossa Morte» e «Proclamamos a Vossa Ressurreição, Vinde Senhor Jesus». Assim sendo, «quem se alimenta na Eucaristia não precisa de esperar o Além para receber a vida eterna: já a possui na terra. Como primícias da vida futura». O próprio Jesus garantiu: «Quem come a Minha Carne e bebe o Meu Sangue tem a vida eterna» (Jo6, 54).

2. Como não agradecer tanta dádiva e tamanho dom? Curiosamente a palavra Eucaristia expande a ideia de gratidão, acção de graças. De resto, a Ceia de Jesus foi já dominada pela centralidade da «acção de graças». Antes de partir e distribuir o Pão, que é o Seu Corpo, Ele «deu graças» (1Cor 11, 24), fazendo o mesmo com o cálice que é o Seu Sangue (cf. Mc 14, 23). E «deu graças» (euchsristésas) porquê? Porque ocorreu aquilo que há tanto tempo se esperava; a redenção daqueles que a Jesus tinham sido entregues pelo Pai. Celebrar a Eucaristia implica uma identificação com Cristo, Aquele que nos deixou o Mandamento Novo do Amor, da Caridade e o exemplifica com o gesto forte e inequívoco do Lava-pés: «Assim como Eu Fiz, fazei vós também». Por isso a Eucaristia é indissociável do servir e do amar dando a vida. A Vivência da Eucaristia é afinal indissociável do testemunho de cada dia.

3. Diretamente ligado ao sinal do “Lava-Pés” surge a edificação da justiça e o urgente serviço à edificação laboriosa do Dom da Paz: “Deixo-vos a Paz, dou-vos a minha Paz”. Sim, a Paz é um Dom concedido ao coração dos Homens e uma luz capaz de iluminar as mentes, a fim de que estas vislumbrem com lucidez a racionalidade da Paz e a monstruosidade da guerra. De facto, com que facilidade de argumentos e justificações diversas se alimenta a guerra, e quão difícil se torna a reconquista da paz! Efetivamente, a sensatez da paz é um Dom de Deus.

Em Quinta-feira Santa, unindo-nos ao queridíssimo Papa Francisco, imploramos o Dom da Paz para esta guerra espalhada por diversos países e continentes, uma guerra mundial aos pedaços, como designa o Papa. Seja-nos possível recordar a Terra Santa, a Ucrânia, Moçambique, o Sudão e todos os focos de guerra. Senhor, longe de nós uma guerra global ou uma loucura nuclear! Saibamos ser com o nosso compromisso cristão, e através da nossa cidadania, construtores duma civilização de Paz. Que a Eucaristia seja pão partido para um mundo novo. Busquemos a Paz que nasce da Justiça e da Liberdade, nomeadamente a liberdade de consciência e da liberdade religiosa. Unamo-nos à Igreja sofredora e aos mártires com origem nas comunidades cristãs mais pobres. Que o seu sangue derramado pela intolerância da violenta seja sementeira do Reino de Deus na Paz, na Justiça e no Amor.

Santa Maria, Senhora do Cenáculo, rogai por nós pecadores!

 

+ Francisco José Senra Coelho

Arcebispo de Évora